quinta-feira, 1 de maio de 2014

Das crônicas de quem morou em sítio



                                                                           Fotografia - TN - Eusébio- CE, 2007, quando ainda existia alguém pra gritar "Tulipa, vem ver o arco-íris"(Ah, Tulipa sou eu, haha, coisas de papai)!


No telhado

Perder um dente era sempre muito estranho. Não me lembro de ter sentido dor, ou constrangimento pela falta que fazia. Estranho mesmo era a festa que todo mundo armava. Todo mundo era comunicado pelos pais, com aquele sorriso no rosto, de que algo estava prestes a mudar por ali; tinha que mostrar a boca pra todo mundo, todo mundo queria arrancar o tal do dente, todo mundo achava lindo ele balançando na boca e, todo mundo sabe que é mentira. E quando se abria a janelinha, então... Mais festa. Querida fada do dente, o meu mundo fica longe, por estradas curvilíneas, escondidas na infância e, como sei que o acesso é uma aventura e tanto, digo que não se preocupe em passar por aqui, com tantos dentinhos por ai afora, à espera, embaixo de travesseiros cheios de esperança. Na verdade, a fada do dente não era nem mencionada na casa da menina de olhos ateus. Devo ter lido em algum livrinho ou visto em algum programinha da TV Cultura, deitada no chão da sala. Lá no sítio sem nome, a história era outra. Jogava os dentinhos de leite no telhado da Casa Grande, sem explicações e sem promessas futuras. Não esperava moedinhas em troca, nem ficava ansiosa a espera de fadinha nenhuma. O dentinho era jogado com todo entusiasmo pra cima do telhado, que, por sinal, era muito alto e havia toda uma preparação para isso. Querido telhado, meu dentinho não mais me pertence, quis sair pra dar uma volta. Bom, que as telhas da Casa Grande têm muita história pra contar, isso é certo. As telhas da cerâmica do vovô acobertaram aquela caixinha de vida, e com certeza, sabem muito mais do que eu mesma. O telhado repleto de dentinhos era, e é até hoje, o sorriso guardado das crianças que ali passaram. É só passar por lá e perceber que o telhado vermelho sorri um sorriso de leite, aquele que a gente tem guardado dentro de si, num cantinho cada vez mais esquecido. Hoje, com a boca cheia de novos dentes, lanço um sorriso pro passado, que me sorri meio torto, meio amarelo, meio de leite, meio de sítio... Nos dias de chuva, eu sei, a água lava os dentinhos das crianças e eles brilham mais...é como olhar pro céu e ver estrelas mortas, pulsando um brilho antigo, reflexo de um instante que não volta mais... apenas  sorri.