sexta-feira, 31 de janeiro de 2014










A (i)legalidade gostosa de uma copiadora

Eu podia estar matando, roubando, vendendo armas, usando drogas, já dizia o pequeno vendedor de jujubas do ônibus. Eles podiam até estar copiando dinheiro. Mas não... eles só copiam livros. Quem se contenta em baixar livros na internet não se derrete ao sentir o cheiro de papel de um livrinho novo, velho ou mofado que seja. “Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização”, dizem as letrinhas pequenas do livro. Mas a copiadora da esquina tá fazendo promoção! São tantas letrinhas por tão pouco. Tantas histórias pelos centavos criminosos do estudante de mochila nas costas, delinquente, intelectual e orgulhoso de suas façanhas, é claro. Ora, dez páginas de um livro saem mais baratas do que aquele pacotinho de jujuba e tão gostosas quanto. A copiadora da esquina da Universidade está sempre lotada de infratores. Chegam de mochilas vazias e voltam com um grande peso nas costas e um ar de descobridores de petróleo entre os dentes. Páginas quentes saem felizes da pequena máquina de copiar... e de lá, corre o estudante, o deliquente, a iluminar  suas folhas com marca texto amarelo. Eis uma das facetas do iluminismo pós-moderno.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Das crônicas de que morou em sítio...

Fotografia: André Maia - Porto Alegre - RS, julho de 2010.
                
                                                                                No balanço...

Debaixo da mangueira, à espera da felicidade desenhada em pneu e corda, papai constrói um balanço pra mim. Se cair uma manga na tua cabeça? Eu como, ué... A corda grande e o balanço baixo faziam um voo nas alturas, dava pra colher manga a cada empurrão. Impulso, impulso, impulso até a hora de saltar. O salto não tinha graça nenhuma e até doía, sabe? O bom mesmo eram os instantes de tensão e medo. É bom sentir medo. Sempre foi. A consciência de que o que tava fazendo não fazia sentido algum, ia resultar numa possível queda, e uma linda tatuagem nos joelhos e uma dorzinha no tornozelo, quem sabe, não me impediam de ter os meus deliciosos instantes de medo pré-salto.  Ventava forte dentro da barriga. Os cabelos, se molhados de tinta azul, fariam uma linda parábola no ar. Eu sabia que era pra isso, exatamente pra isso, que foram feitos os pneus. Pneus nunca combinavam com carros, na cabeça daquela menina tonta, que ficava sempre tonta ao viajar quinze minutos de carro. É...os pneus foram feitos pra fazer balanço, ventania na barriga. 
A agonia de viajar de carro estava em saber pra onde ia. A certeza do destino e a certeza do tempo de chegada me faziam esquecer o caminho e ficar enjoada de tantas certezas. No balanço não...no balanço, a cada impulso se podia mudar o rumo, viajar pra outros sóis,  e o caminho era delicioso, sem hora pra chegar. E se eu nem quisesse chegar, era só saltar e com uma dorzinha de leve, chegar ao chão com a certeza de que eu queria mesmo era viajar, não era chegar a lugar nenhum. Se via um pneu na rua, ficava imaginando um balanço bêbado embaixo de uma mangueira qualquer. Um carro eram quatro balanços, quatro sorrisos, quatro medos, quatro saltos, quatro viagens a lugar nenhum. Não tinha acúmulo de água no pneu, nem mosquito dodói, nem nada...tinha felicidade desenhada em pneu e corda. 
De vez em quando, o pneu estava ao chão e a corda havia sumido. Ela acabava voltando e abraçando mais uma vez a árvore. Alguém, supostamente, teria precisado da corda. Isso eu nunca entendia. O que poderia ser mais importante do que o balanço na árvore? Nesses dias, eu era forçada a procurar outros medos. Subir na árvore, quem sabe, pra procurar a manga mais cheirosa. Isso, era esse o cheiro do balanço....cheiro de manga rosa. Embaixo da mangueira também podia apenas sentar no chão, desenhar na areia, fugir das formigas. E, nessa fuga, eu percebia que além de cheiro, o balanço também tinha um som, era o barulhinho de folhas secas no chão, amontoadas pra isso, pra fazer barulhos a cada impulso dos pezinhos no chão. “Menina, tu já tá grande demais pra esse balanço. Essa menina não cresce mesmo”. “Tô nada! A mangueira é mais velha do que eu e tá ai, no maior balanço estático comigo. Nunca fui de riscar troncos de árvores. Se acaso forem visitar  a minha mangueira, não perceberão que passei por lá, a não ser que façam bastante silêncio e possam ouvir a revolução que era o barulho do balanço, uma verdadeira festa, em folhas secas, em vento cortado por um grande impulso no ar e um grito de mãe, quando no flagra de um voo audacioso, reclamava: “Menina, pelo amor de deus, cuidado pra não cair e bater a cabeça”. De todas as quedas, nunca bati a cabeça. Não que eu lembre. Aliás, já disse que não me importava o salto, importava mesmo o caminho e, lá sim, a cabeça se abria no vácuo que o balanço criava em violento corte no vento. Cabeça aberta, que até hoje não cessou viagem.